segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O Dilema entre a Justiça versus Responsabilização e a Impunidade versus Paz:

De Dhlakama ( Karadžić, Al-Bashir) à Mugabe

Por Leopoldo de Amaral[1]

Nas últimas duas semanas, a questão da dicotomia justiça/responsabilização ou paz/impunidade veio à tona com o pronunciamento por crimes de guerra do Presidente do Sudão, Omar Al-Bashir, pelo Promotor do Tribunal Penal Internacional, e com a recente detenção e extradição do foragido Radovan Karadžić, também acusado de crimes de guerra, para o Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda. Uma oportunidade soberana para aflorarmos algumas ideias sobre a busca da paz , sem descurarmos, no entanto, da necessária justiça internacional pelos crimes cometidos.
Um dos instrumentos encontrados para minorar o sofrimento das vítimas de conflitos sangrentos e crimes hediondos foi a criação do Tribunal Penal Internacional. Neste pequeno artigo, analisaremos até que ponto este tribunal impede ou catapulta os processos de resolução de conflitos e da busca da paz.
O Tribunal Penal Internacional

O tratado que cria o Tribunal Penal Internacional (TPI) foi concluido em Roma em 1998, para, em 2002, entrar em vigor (Tratado de Roma).
A criação deste tribunal consubstancia uma excepção ao princípio da não intervenção nos assuntos internos dos Estados (soberania e jurisdição doméstica) plasmado na Carta da Organizacão das Nações Unidas (ONU), abrindo a possibilidade de políticos, chefes militares e qualquer outro cidadão serem julgados por crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade por instituicoes de administração de justiça externas ao do seu país.
O primeiro passo nesse sentido foi dado após a Segunda Guerra Mundial, com a criação dos Tribunais de Nuremberga e Tóquio, e, posteriormente, com a criação, em 1993, do Tribunal Penal da Ex-Jusgoslavia,e, em 1994, do Tribunal Penal do Ruanda, todos tribunais especiais, dedicados a um conflito especifico, ou seja, tribunais ad hoc.
O TPI acaba com os tribunais ad hoc, os quais dependiam da vontade do Conselho de Seguranca da ONU, e cria um tribunal permanente. Com isso, avança-se em direcção à institucionalização de uma autoridade de justiça internacional, e evita-se que, por motivos políticos ou de outra monta, o Conselho de Segurança interfira na realização da justiça. Com a criação do TPI, evita-se que se repita o que se deu no caso do Cambodja, quando o Conselho de Segurança vetou a hipótese do Cambodja ter um tribunal similar pelos massacres cometidos pelo regime de Pol Pot nos anos 70, e que deixaram mortos mais de 1 milhão de pessoas.

A idéia do TPI não é substituir os tribunais nacionais mas, sim,complementá-los, isto é, não deixar que indivíduos responsáveis por crimes de guerra fiquem impunes em razão da incapacidade dos sistemas nacionais de administracão de justiça levarem a cabo a investigação e o julgamento dos acusados pelos referidos crimes, seja por que tais tribunais carecem de recursos humanos e materiais, são parciais, dependentes ou incapazes de fazer justiça. Em outras palavras, o TPI age quando os suspeitos escapam ou gozam de impunidade ao nível nacional, ou são protegidos pelo sistema. É o princípio da subsidiariedade em acção.

Dhlakama, Moçambique e Estados Unidos da América

Moçambique assinou o Tratado de Roma (um dos quatro Estados da SADC, a par do Zimbábue, Angola e Suazilândia), mas não o ratificou, o que implica que aquele Tribunal não tem jurisdição em Moçambique, ou seja, não pode julgar casos de crimes de guerra, genocídio, crimes contra humanidade e agressão que tenham ocorrido em Moçambique. Mas tal não quer dizer que os moçambicanos que cometam tais crimes em Moçambique não possam ser processados, acusados e julgados pelo TPI. Qualquer Moçambicano que seja acusado de ter praticados tais crimes e se encontrar no território de um Estado parte, ou seja, de um Estado que ratificou e reconheça a jurisdição do TPI (incluindo avião e navio de bandeira desse Estado, e.g. a África do Sul), pode ser detido e extraditado para o TPI, para ser julgado pelos crimes a que tenha sido pronunciado de os ter cometido em Moçambique ou em qualquer outro Estado. É a chamada jurisdição universal do TPI. Essa é a razão principal pelo qual os Estados Unidos da América (EUA) celebraram com certos Estados, incluindo com Moçambique, acordos de não-extradição para Haia dos seus cidadãos.

Os EUA não ratificaram o Tratado de Roma e não reconhecem a jurisdição do TPI, embora tenham assinado o texto que deu forma ao tratado, o que, em Direito Internacional, significa o desejo dos EUA de cooperar com o Tribunal e não efectuar nenhuma acção ou omissão que obstrua o fim para o qual o Tribunal foi estabelecido, o que claramente não tem sido o caso com estes acordos de não-extradição. Note-se que os EUA posteriormente tentaram, de forma infrutífera, retirar a sua assinatura do Tratado.

O Tratado de Roma prevê que ninguém pode ser punido por crimes que tenham ocorrido antes da sua entrada em vigor, em 2002, razão pela qual, mesmo que Moçambique tivesse ratificado o Tratado de Roma, crimes de guerra e contra a humanidade cometidos durante a guerra civil em Moçambique NÃO poderiam ser referidos ao TPI para julgamento, pelo que tanto o líder da RENAMO assim como Chissano, então Chefe de Estado, não poderiam ser acusados, detidos e julgados pelo TPI uma vez que os alegados crimes terão ocorridos antes da entrada em vigor do Tratado de Roma que cria o TPI.

A prisão de Radovan Karadžić e o processo de paz nos Bálcãs

Passam dez anos desde que o Tratado de Roma foi adoptado, com vista ao estabelecimento de um tribunal internacional penal permanente, mas tal esforço não tem sido fácil, pois cada acto firme do tribunal tem encontrado opositores, os quais qualificam suas acções como obstáculos na resolução de conflitos e na busca da paz. Tais críticas têm sido expressas principalmente quando Chefes de Estado ainda no poder, são acusados de tais crimes. O recente pronunciamento feito pelo Promotor-Chefe do TPI contra o Presidente do Sudão, Omar Al-Bashir, por crimes de guerra, de genocídio e contra a humanidade é um exemplo típico.

As mesmas críticas haviam sido feitas em 1995, quando o Promotor do Tribunal Penal da Ex-Jusgoslávia pronunciou o Presidente da República da Sérvia-Bósnia, Radovan Karadžić e o seu Chefe Militar, General Ratko Mladic, pelos massacres de Srebrenica, nos quais mais de 7 mil pessoas foram mortas, o pior crime de guerra na Europa depois do Holocausto. O momento deste último pronunciamento aumentou as críticas ao TPI, pois coincidiu com a véspera da conferência de paz de Dayton, o que levou a que ambos não viajassem para Dayton com medo de serem presos.

Mas como ficou claro, a não presença daqueles pronunciados pelo TPI não impediu que as partes em conflito chegassem a um acordo. Pelo contrário, pode argumentar-se que tal pronunciamento pode ter ajudado na conclusão das negociações sobre a paz entre nos Bálcãs.

Não deixa de ser curioso que Karadžić somente tenha sido preso a alguns dias do prazo estipulado pela União Europeia (UE) como condicção sine qua non para encetar negociações com a Sérvia com vista a eventual entrada deste país para a almejada UE.

A prisão de Slobodan Milošević e a paz no Kosovo

Em 1999, o Tribunal Penal da Ex-Jugoslávia pronunciou o então Presidente da República Federal da Jugoslávia, o agora falecido Slobodan Milošević, por crimes de guerra cometidos no Kosovo. Outra vez as críticas foram feitas denunciando o timing, pois nessa altura a NATO intervinha no Kosovo, e os críticos argumentavam que o pronunciamento de Milošević tornara-o como um orgão ao serviço da NATO, e que impediria a obtenção de um acordo. E outra vez essa previsão mostrou-se completamente errada. Milošević capitulou duas semanas depois do seu pronunciamento, e a guerra do Kosovo caminhou para seu final

A prisão de Charles Taylor e o paz na Libéria

Outro Chefe de Estado a ser pronunciado foi o liberiano Charles Taylor. Embora o Promotor do Tribunal Especial da Serra Leoa[2] tenha pronunciado Taylor em Março de 2003, pelos crimes de guerra que devastaram aquele país, o pronunciamento foi apenas tornado público três meses mais tarde. Outra vez, o momento da tal publicação foi o factor principal para mais uma severa crítica aos mecanismos de justiça internacional. O pronunciamento foi tornado público em Junho de 2003, enquanto Taylor participava numa conferência de paz no Gana que pretendia terminar com a guerra civil na Libéria.

Como anfitriões da conferência, os ganenses ficaram particularmente incensados quando foram solicitados a deter e extraditar Taylor naquelas circunstâncias, e, naturalmente, recusaram-se a efectuá-lo. Embora compreensível o dilema que os ganenses enfretaram naquele momento, o pronunciamento manteve-se, e a pressão cresceu até que Taylor teve que deixar o poder e partir para o exílio na Nigéria, ajudando, assim,a terminar a guerra no seu país. E o resto é história, pois Taylor encontra-se neste momento a enfrentar a justiça em Haia, sede do TPI, e a Libéria encontra-se em paz, tendo feito recentemente história ao eleger a primeira mulher para chefiar um país africano.

A questão da justiça internacional nas negociações no Zimbábue e no pós-Mugabe

Tal como Moçambique, o Zimbábue não reconhece a jurisdição do TPI, e tem os seus cidadãos fora do alcance directo do Tribunal. No entanto, o Conselho de Segurança da ONU pode muito bem, à semelhança do caso Al-Bashir, instruir o TPI a investigar o regime de Mugabe. Estão ainda frescas as imagens de violência, das vítimas de tortura, de presos políticos, de deslocados políticos, económicos e sociais que se seguiram às eleições de Março de 2008, tudo aparentemente orquestrado pelo regime zimbabueano e os seus jovens veteranos de guerra (leia-se jovens milícias).
As duas principais formações políticas no Zimbábue celebraram recentemente um memorando de entendimento (MOU) com vista a definir princípios informadores das negociações políticas para pôr fim à crise político-económica que graça o Zimbábue nos últimos 10 anos. Na agenda definida no MOU, a questão da justiça e responsabilização pelas atrocidades cometidas encontra-se diluída no item do “Estado de Direito”. Naturalmente que a questão da justiça e responsabilização terá que constar no acordo final, seja optando-se pela amnestia, por um processo de verdade e reconciliação ou pela investigação e punição dos perpetradores das violações de direitos humanos, sendo esta última a menos provável, dada a urgência de um compromisso político que retarde a queda ao colapso do Estado Zimbabuano.

O Zimbábue, e Mugabe em particular, tem um histórial de violência. Nos meados dos anos 80, cerca de 20 mil pessoas foram dizimadas em Matebeleland, naquilo que Mugabe qualificou de “momento de loucura”. Em 2005, um relatório da Enviada Especial da ONU para Assentamentos Humanos no Zimbábue indicou que não se podia discurar completamente a qualificação da operação “restaurar a ordem” (operação Murambatsvina), que desalojou cerca de 700 mil pessoas dos subúrbios de Harare, como um crime contra a humanidade.
No entanto, enfatizou a necessidade de os perpetradores serem chamados à responsabilidade pelos crimes cometidos com aquela operação. Recentemente, após as eleições de Março de 2008, cerca de 100 pessoas foram reportadas como vítimas da violência orquestrada pelo regime de Mugabe, e uns tantos milhares encontram-se interna e externamente deslocadas. Foi esta panóplia de eventos sucessivos que levou a que os EUA e a UE reforçassem as sanções especiais contra Mugabe e os seus correligionários.

Estranhamente no Zimbábue o que deverá ter forçado Mugabe à mesa negocial não foram as sanções especiais (targeted sanctions) ou o espectro de uma investigação pelo TPI, mas sim a economia nacional, com a inflação mais galopante do mundo (reportada, oficialmente, a 2,2 milhoes percentuais, mas com economistas a indicarem números muito mais elevados).
O regime de Mugabe chegou à conclusão (depois de esgotar os manuais de economia política e financeira) que somente um “plano Marshall” poderá salvar o Zimbábue do precípicio, e tal ajuda financeira não poderá vir sem um acordo negocial, sem o retorno à democracia e ao Estado de Direito. Esta foi a única razão pela qual Mugabe decidiu negociar.
Poderão estas negociações ofuscar da memória do povo e da comunidade internacional a necessidade de responsabilização interna ou internacional pelas atrocidades cometidas nestes últimos anos? Acredito que não, Mugabe terá um dia o seu julgamento, formal ou informal, no Zimbábue ou fora do Zimbábue.
Conclusão

Não deixa de ser estranho que a União Africana venha agora exigir que o mandado de busca e captura emitido contra Al-Bashir seja protelado por um ano para não perigar a seguranca das forças conjuntas de paz no Darfur e dar lugar ao processo negocial.

O conflicto de Darfur ocorre há mais de cinco anos. Estima-se que cerca de três mil pessoas foram mortas pelas forças armadas e milícias Janjaweed patrocinadas pelo regime Sudanês, e que cerca de dois milhões e quatrocentas mil pessoas tenham sido forçosamente deslocadas. Uma semana antes do pronunciamento de Al-Bashir, sete soldados da força conjunta de paz da União Africana e das Nações Unidas foram copiosamente assassinados num emboscada montada pelas mesmas milícias, e outros vinte e dois ficaram feridos. Como sabemos, neste momento as negociações de paz para aquela região encontram-se num impasse, pelo que não existem argumentos para se afirmar que o pronunciamento de Al-Bashir vai obstruir a obtenção da paz no Darfur.

Pelo que não podemos de forma alguma afirmar que a possibilidade de se fazer justiça no Darfur tornará impossível ou dificil a busca da paz no Sudão.

Quando a humanidade embarcou na criação do TPI, tinha em vista acabar com a impunidade que alguns chefes de Estados, militares, milícias e indivíduos desfrutavam depois de terem cometido ou omitido a sua acção na investigação de crimes hediondos. Tal esforço esta gradualmente a grangear sucesso, e o pronunciamento de Al-Bashir, que, a propósito, não foi ainda condenado, e que se lhe outorga o princípio da presunção de inocência e de defesa, constitue um marco histórico no longo percurso da obtenção da justiça internacional. A responsabilização dos Chefes de Estados e de Governos individualmente desprovidos dos seus privilégios e imunidades é corolário de um dos principios fundamentais do TPI, que é o princípio da irrelevância da função oficial. A ideia de que os dirigentes dos Estados eram juridicamente irresponsáveis pelos seus actos durante o seu mandato teve o seu fim.

[1] Leopoldo de Amaral, LLM (Pretoria) (leopoldoa@osisa.org ), ex-docente de Direito Internacional da UEM. Assistente de Programas de Direitos Humanos e Democracia da Open Society Initiative for Southern Africa (OSISA). Escreve na sua capacidade individual.

[2] O Tribunal Especial da Serra Leoa foi criado conjuntamente entre o Governo da Serra Leoa e a ONU para julgar os responsáveis pelas sérias violações do Direito Internacional Humanitário e a legislação da Serra Leoa entre 30 de Novembro de 1996 e 2002, data da celebração do acordo de estabelecimento do tribunal.

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