segunda-feira, 28 de julho de 2008

HOMENAGEM AO DR. DOMINGOS AROUCA

Um acto de justiça tardio
Por ocasião da homenagem que foi prestada ao Dr. Domingos Arouca no último domingo, por ocasião do seu 80.º aniversário natalício, deixamos aqui na íntegra a intervenção feita na ocasião por Rui Baltazar dos Santos Alves, contemporâneo do homem moçambicano que mais tempo passou em cadeias por reivindicar a Independência de Moçambique. Rui Baltazar é o presidente do Conselho Constitucional da República de Moçambique.
Arouca para além de continuar a exercer advocacia é também membro do Conselho Superior da Magistratura Judicial. Eis na integra a intervenção do Dr. Rui Baltazar na homenagem que decorreu no Centro de Conferências Joaquim Chissano.
“Antes de mais, quero saudar esta iniciativa de se homenagear e celebrar 80 anos de vida do Dr. Domingos Arouca. Homenagear esta vida e este Homem é um acto de justiça tardio, mas que felizmente ocorre quando ainda temos o privilégio de beneficiar da sua presença física. Diversos são os ínvios caminhos através dos quais se vai escrevendo a Historia.
Para muitos, a história recente de Moçambique só se escreve em termos epopeicos, exaltando feitos e figuras, criando estereótipos, mistificando factos, e deixando na penumbra ou no esquecimento largas zonas do combate libertador ou protagonistas que também participaram da conquista da independência da nossa pátria.
Oficializa-se, assim, uma deformada visão necessariamente empobrecedora e redutora da nossa história. Mas tenhamos consciência que tudo isto é episódico e acidental. A História desnuda-se e revela-se em toda a sua complexidade a longuíssimo prazo, e mitos de hoje podem amanhã reduzir-se às suas verdadeiras dimensões, se não mesmo desaparecer, recuperando-se do olvido factos e personagens que ficaram envoltos em denso nevoeiro.
For isso esta ocasião é também uma oportunidade para resgatar essa parte penumbrosa da nossa Historia e trazer, à memória de uns e ao conhecimento de outros, esse combate pela liberdade de Moçambique que também foi protagonizado pelo Dr. Domingos Arouca. Conheci o Dr. Domingos Arouca nos longínquos idos dos anos 60, como colega de profissão.
Falar dos anos 60, aqui e agora, quase parece ser um mergulho na pré-história. Lourenço Marques vivia então um intenso desenvolvimento económico e urna expansão física e demográfica, mas diversos sismos políticos se anunciavam na Africa e no mundo. Na verdade, pode dizer-se que será mais correcto falar-se não de uma mas de duas cidades de Lourenço Marques. Havia uma cidade de cimento onde viviam os brancos, e uma outra cidade de zinco e caniço onde viviam os negros.
Os negros só eram tolerados na cidade dos brancos e circulavam nela para prestarem os seus serviços e a sua mão de obra e, ao fim do dia, ou já em plena noite, recolhiam à outra cidade ou a dependências bem diferenciadas das casas dos patrões.
O racismo, a discriminação, a dominação, a opressão estavam presentes em todos os aspectos da vida quotidiana, desde os assentos nos autocarros até aos elevadores onde os negros não podiam entrar, para já não falar dos muitos lugares e actividades cujo acesso lhes era interdito. Com o despoletar das independências dos novos estados Africanos, devido à enorme pressão internacional que se exercia sobre o governo colonial-fascista português, na década 60 começaram a surgir tímidas aberturas para alterar uma ordem económica e social que era insustentável, mas sempre através de medidas essencialmente cosméticas que visavam não por em causa o sistema existente.
O aparecimento do Dr. Domingos Arouca nessa altura e nessa sociedade, o primeiro negro moçambicano advogado, actuou como um detonador de expectativas ocultas. Já antes por aqui passara o Dr. Eduardo Mondlane como uma espécie de profeta anunciador de luminosas madrugadas, e agora instalava-se este filho do povo moçambicano, com o seu escritório, no centro da cidade e desse mundo dominado pelos brancos, como que a afirmar com a sua presença que tudo era possível.
A década de 1960 foi a década do despertar dos sonhos. Enquanto lá no norte se disparavam os primeiros tiros, aqui, na zona dominada pelo opressor colonial, sussurrava-se, conspirava-se, faziam-se encontros e reuniões, exploravam-se oportunidades, fossem elas de divulgar filmes ou abrir jornais, circulavam notícias, livros proibidos e panfletos, ouviam-se rádios com outras mensagens, debatiam-se ideias, tudo no maior sigilo porque a rede da polícia política, a famigerada PIDE, tinha antenas e denunciantes em todo o lado.
Era um silêncio prenhe de ruídos, e aproveitavam-se todas as possibilidades, mesmo que suicidas, para denunciar o colonialismo onde quer que fosse viável fazê-lo, nas actividades culturais, no Tribunal Militar, nos encontros clandestinos, na poesia que se declamava ou na prosa, nos artigos ocasionais, na rádio, no desenho ou na pintura.
O Dr. Domingos Arouca poderia ter-se instalado no conforto que o exercício da sua profissão lhe garantia, mas não o fez. Lançou-se no combate político, mobilizou jovens, ligou-se a associações, conspirou, assumiu riscos, até cair nas malhas da PIDE.
Recusou aliciamentos afirmando sempre o seu nacionalismo, a sua luta por um ideal em que acreditava: a inevitável independência de Moçambique e a construção de uma sociedade mais justa para o povo moçambicano. Numa entrevista que concedeu ao historiador português José Freire Antunes diz o Dr. Domingos Arouca que esteve preso oito anos, um mês e 21 dias, depois de passar 4 anos na Machava, um no Hospital-Prisão de Caxias e três anos na cadeia do Forte de Peniche.
Cada um desses dias o marcou profundamente, porque foram dias roubados à sua vida e ao convívio da sua querida família, do seu povo e do seu país. Só isto tornaria o Dr. Domingos Arouca símbolo inesquecível da nossa história de luta e resistência contra o opressor. Enorme foi o preço que pagou pela sua verticalidade, pela sua coerência, pela sua determinação em estar do lado do povo e do país.
Nessa altura, acreditava-se em ideais, lutava-se por eles até às últimas consequências, aceitavam-se sacrifícios. Os predadores das riquezas do país e do trabalho dos moçambicanos, esses, eram, então, os colonos. O pais mudou, o mundo mudou, agora vivemos outras realidades e contextos, e já não estamos tão seguros sobre se ainda existem ideais, sonhos e valores.
Mas sabemos, isso sim, de ciência certa, que ao saudarmos o Dr. Domingos Arouca, ao desejarmos-lhes muita saúde e muitos mais anos de vida, estamos a saudar o que de melhor foi capaz de dar um ilustre filho do povo moçambicano, e estamos a saudar outros heróis que, inspirados no seu exemplo, estão para vir e que saberão resgatar, com novos valores, um diferente combate libertador, por outros ideais e esperanças que verdadeiramente sirvam o povo moçambicano.
Parabéns e bem-haja, Dr. Domingos Arouca. Maputo, Julho de 2008.
(Rui Baltazar dos Santos Alves)

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