Canal de Opinião: por Adelino Timóteo
Heliodoro Bapista: O Poeta assassinado
“O melhor que alguns nomes do poder me deram foi: três prisões, três desempregos – um deles durante mais de cinco anos – fome e morte lenta” – H.B.
Beira (Canal de Moçambique) - Conforme dizia ainda outro dia António Cândido Franco, "Os poetas escolhem sempre um dia para morrer". Franco referia-se então a Rui Knopfli que morrera no dia 25 de Dezembro de 1997, em pleno natal. A profecia de Franco talvez repetira-se quando este 1 de Maio Heliodoro Baptista perdeu a vida, depois de ao longo do dia ter andado com amigos, que mal se aperceberiam que na noite daquela data ele acenaria a despedida, para todo o sempre. Heliodoro faleceu em sua casa, cerca das 22 horas, no «Prédio da Grelha», perto do «100 à Hora», na Beira. De ataque cardíaco.
Ele a si se nomeava: Poeta de três prisões. Exílio e desempregos. Heliodoro foi o primeiro jornalista preso nos primeiros anos após a independência, como consequência da publicação de uma série de artigos com que desagradou o “Governo de Moçambique”, ou melhor, o Partido Frelimo. Como as prisões e exílios atestam, ele não foi um poeta amado. A pátria não o amou, apesar dele tanto tê-la amado. Heliodoro foi por assim dizer um poeta que não tendo saído para o exílio, passou-o aqui dentro do país 34 anos. Muitos dos anos ele passou em sua casa, donde quase não saía, ali ficando temporadas, até seis meses, porque ele não se identificava com este mundo, que o repelia quando ele cobrava os valores por quais lutara ao apoiar a causa da independência nacional. “O melhor que alguns nomes do poder me deram foi: três prisões, três desempregos - um deles durante mais de cinco anos -, fome e morte lenta”, são dele estas palavras.
O país solar que ele sonhou nunca viu. E desencantado com um país que anda a trouxe-mouxe lançou-se em críticas aos adeptos do liberalismo que delapidaram a banca, não poupou críticas até aos países ricos que sustentam a elite à custa da dívida externa que deverão pagar as próximas gerações de moçambicanos. Heliodoro foi um visionário alvo da censura do Conselho Superior de Comunicação Social por ter perguntado publicamente ao então presidente Joaquim Chissano "quando acaba de vender o país". A visão do poeta levou-o a uma espécie de amor-desamor a este "despaís", citando as suas palavras, «despaís» este a que ele se ligava de forma umbilical numa fidelidade que sempre o caracterizou, não tendo por isso requerido alguma cidadania estranha, que por certo nunca lhe teria sido recusada, entre outras facilidades, que não constituíam o mote da sua subversão. A sua condição epidérmica e as posições críticas levaram a que um dos seus colegas lhe propusesse mordomias em troca do silêncio. Quase no limiar de 1990. Foi quando trabalhava no jornal Notícias. Heliodoro sentiu várias vezes que o empurravam para fora do país, e aqueles que o faziam magoaram-no.
Embora de pai de origem portuguesa e mãe africana, ele nunca escondeu a sua opção, ele nunca assumiu algo diferente desta identidade que nos anos anteriores à independência o tornaram um combatente de papel e esferográfica no punho. “Sabem, no entanto, qual foi ou é a minha situação? A de um pária, um estrangeiro dentro do seu próprio país!”. São dele estas palavras. A opção por Moçambique talvez o levou a que pagasse com a vida, neste último 1.º de Maio, o que os outros sempre hesitaram em aceitar: a sua moçambicanidade activa. Uma moçambicanidade que o tornava mais moçambicano e nacionalista do que os que o descriminaram. Uma moçambicanidade que o levara a defender o erário público, que os outros não queriam que ele defendesse.
Heliodoro era contra a deificação do Homem Novo
Enquanto uns deificavam o Homem Novo, Heliodoro sentia que lhe capturavam a moçambicanidade e levantava-se em mangas de camisa para a defender. Heliodoro estava à procura de um país justo, limpo, pleno, prometido pelo Homem Novo. E o País que insistiam que fossem dele e que ele recusou é este país avaro em cultura, rico em corrupção. Heliodoro vivia desta recusa que alguns aceitam pacificamente. E nessa situação se foi isolando. E houve também casos que o foram isolando deliberadamente. Viveu rodeado de livros. Tinha uma sabedoria que o país, desafortunadamente, não percebeu. Fosse terem-no percebido não o deixariam à margem, como foi o que testemunhámos. Nunca o puseram a leccionar ou a dar palestras de literatura numa escola ou universidade.
Apesar dele ter sido um conhecedor, nunca formou professores de literatura. A sua capacidade memorialística era incrível. Quando muitos o davam por louco, a memória de Hediodoro era capaz de regredir até aos tempos primitivos, chamar nomes, sustentar com datas e factos. Até ao detalhe, numa lucidez incrível. Heliodoro podia falar de Jorge Luís Borges como se este tivesse sido alguma vez seu amigo. Ou de Hemingway. Ou de Fitzgerald. Ou de Sophia Andersen. Ou de Tolstoi, ou de Dostoievsky. “É um Carnaval de há milhares de anos. Todo o poder corrompe, dizia Confúcio. Todo o Poder chafurda na insensibilidade, no crime, na ignorância, no horror, no sangue quente de suas vítimas”, são também dele estas palavras. Heliodoro Baptista, que leu José Lins Rego, Jean Genet, J. Amado, Camilo, Eça, Régio, Victor Hugo, Lorca, Neruda, Maiakovski, Camus, Baudelaire, Simone de Beauvoir e Sartre, Eluard, Tagore, Tolstoi, Gogol, Yevtuchenko, Pasternak, Fernando Pessoa, T.S. Eliot, Hemingway, John dos Passos, Steinbeck, Carson McCullers, Scott Fitzgerald, Thomas Mann, Torga, Machado de Assis, Natália Correia, Lobo Antunes, Saramago, Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Herberto Hélder, António R. Rosa, tinha desprezo pela manifesta incultura do poder. Um poder que nunca se preocupou com uma política de incentivo a publicações.
Um poder que nunca se preocupou em tornar os escritores mais interactivos com a juventude estudantil, acabando eles próprios, os escritores, se empenhando socialmente em vícios, que ele desaprovava. Ele estimulava o poder a aproximar-se dos livros por exemplo quando publicava uma obra sua. Não se esquecia de enviá-la a alguns daqueles homens, o que nem sempre era percebido, porque alguns, que ficaram por lhe pagar, incluso do que ele tirava da sua livraria, interpretavam como sendo um desejo de ganhar dinheiro. Mas na ordem de hierarquia das prioridades de Heliodoro, o dinheiro talvez ficasse na última posição. Para quem o conheceu sabe que na ordem de importância em primeiro lugar estava o seu núcleo familiar, os filhos, depois a poesia, depois a poesia, depois ainda a poesia, que “é a minha incapturável sombra”, cito-o. Poesia sinédoque do país, sinédoque do amor, da terra, da mulher. E pagou caro com essa opção porque os que se foram constituindo em elite económica o passaram a desprezar, quando ele perdeu a capacidade de subsistência.
Uns criticaram Heliodoro devido à sua, se permitem, leviana opção pela poesia. Uns questionavam a posição do homem incorruptível numa fase de liberalismo económico. Mas Heliodoro viveu de uma fé, que o deverá ter traído, enquanto aguardava por um reconhecimento que nunca lhe chegou. Um reconhecimento cujo valor superaria a fortuna, porque a fortuna fizera-o ele em três livros: "Por Cima de Toda a olha", "A Filha de Thandy" e "Nos Joelhos do Silêncio". “São livros que “podem cheirar a babugem, a vagina, a esperma, a rosas, a caju, a lanho, a jasmim, ao bolor das paredes das cadeias desumanas, a vida. Cheiram a ruínas deste país arruinando-se.
E também a sangue, a pólvora, a corpos podres mas iluminados pela luz eterna de quem deseja justiça. Das tumbas anónimas, rebenta, todos os dias, a música inimitável e pássaros, muitas aves”, citamo-lo na entrevista ao Rogério Manjate. Talvez o reconhecimento lhe chegue postumamente. Porque o nome de Heliodoro não se desdenha numa literatura que não é suficientemente rica para recusá-lo. Heliodoro é um vulto, a par de José Craveirinha e Rui Knopfli. Só que este vulto nunca era visto nos corredores da “marrabenta política” nos arredores da Ponta Vermelha. Ele era de terras rebeldes onde há homens que nunca se quis fazer crer que também são referências neste Moçambique.
Reconhecer a sua dimensão o faria descansar em paz, pois da dor com que Heliodoro viveu pouco acredito que efectivamente possa estar em paz. Heliodoro não estará em paz com o poder que o prendeu e depois tentou corrompê-lo oferecendo-lhe alguma comodidade que, não fosse a sua irreverência teria aceite e não chegaria ao extremo a que chegou: uma morte lenta, que o vigiava, naquela opção limite de vida, vivendo numa pequena flat degrada de um prédio, quando lhe tinham oferecido uma vivenda em bairros chiques da Beira.
Uma Beira deprimente, mesquinha, que não o mereceu totalmente porque a dimensão de Heliodoro superava esta cidade-escombro – apenas agora a desabrochar – sancionada pela sua opção rebelde, entregue a carências de vária ordem como Teatro, Museu, Galerias, como ele vários vezes me dizia. Nesta Beira, devo dizer que durante cinco anos, após a sua libertação das celas do SNASP, nos anos oitenta, viveu de amigos, tendo por cartão de trabalho uma caderneta de "escritor", da AEMO, que o safou da operação produção, que o podia ter levado a Niassa, como foi o caso de muitos, mas que a Polícia, então ignorava, nunca detectou. Neste tempo viveu de amigos, alguns dos quais ele sempre referiu: Adamo e Gilberto Correia, que lhe enviavam algum rancho, que ele dividia com os filhos: Pablo e Guy. O poeta iria completar 65 anos a 19 de Maio. Sobreviveu a muitas mortes. Ressuscitou de outras certas. Seria para o infortúnio dos seus detractores.
Grande parte dos seus resgates à vida deve-se a uma mulher que soube compreender as batalhas em que ele estava envolvido, embora não o aprovasse de todo. Estou a falar de Celeste Mac-Arthur, que tinha uma presença circular ao que ele escrevia, e que sabia apoiá-lo e também apelar-lhe para que vivesse. É à existência desta mulher que se deve os muitos anos que Heliodoro Baptista passou em casa, esquecido, ignorado, numa luta às vezes desigual, de dois polos, que adversamente os unia. E que a sociedade local e nacional sempre homenageou. É também a seu pecúlio, como designava os filhos (Guy, Pablo, Buda e Palmira). Neles encontrara a razão que o fazia abraçar à vida. "Já não estou, afinal, doente; para sempre fui e morri. Mas pela noite África, oceânica, regresso. Renasci," in "Nos Joelhos do Silêncio," afinal este é um testamento, livro premonitório com que encerra o ciclo, a triologia acima referida. Com alguma economia feita nos anos em que foi delegado do Notícias, onde trabalhara até 1989 ou princípio de 1990, se não falho, abriu a sua livraria, com que procurou alguma subsistência que não encontrou, num país onde os quem têm dinheiro optam pelo álcool e o livro nada lhes diz, conforme caracterizaria o novo-riquismo. Fechou a livraria porque no prédio degradado onde funcionava, infiltrações e furos na canalização causaram-lhe grandes prejuízos. Heliodoro Baptista tinha uma face crítica que talvez tenha magoado a muitos, mesmo àqueles que bem o queriam.
Mas é preciso percebermos que um homem marcado com aquelas qualidades e alvo de sequelas não poderia encontrar outro mecanismo de sobrevivência senão a defesa, senão agir em causa própria, desconfiando cada vez mais, restando-lhe o casulo, donde pouco saia porque nos últimos tempos a quantidade de amigos de Heliodoro não passava de uma palma da mão. Quase ninguém lhe telefonava. Quase ninguém tinha pachorra para ouvi-lo. Digo, dos amigos com que ele privara desde a juventude pouquíssimos tiveram paciência para o acompanhar nos últimos anos. Nos últimos anos ele terá chegado a regenerar-se, sabia pedir desculpas. Sabia perdoar, embora nunca o tivesse ouvido a perdoar aqueles que o levaram a uma degradação lenta e progressiva, uma espécie de reacção aos actos preparatórios de homicídio voluntário que lhe haviam preparado e contra o qual ela tentava escapar como o fez ao longo de 34 anos, quando chamava as coisas pelos seus nomes: como obnóxios - de significados poéticos: assassinos, vende-pátrias. “E eles, do Poder, conseguiram que, hoje, eu tenha um rendimento flutuante abaixo de um repórter-estagiário. Tenho quatro filhos, a mãe deles compra a crédito e há dias que nem vinte mil mt tenho no bolso, e navego em dívidas. Aí vem algo semelhante ao ódio. Um ódio impotente” - voltamos a citar as suas palavras.
Enganam-se aqueles que pensam que se livraram dos avisos à navegação do poeta, porque Heliodoro, que deixou muitos discípulos, continuará a falar por intercepção daqueles que ele formou. Heliodoro continuará a falar pelos escritos que deixou em livros, antologias e jornais, publicados quer em Moçambique quer no estrangeiro. Ele continuará a ser a voz incómoda do poder, o porta-voz dos excluídos, entre os quais se contava ele próprio, e está a maioria deste povo. É a estes que o poeta deixa uma mensagem de esperança: "A ternura indisfarçável da leitura/ dos nossos poetas há-de crescer... a escrita inventariará a obsessão do medo, do sangue, do amor, essa voz, essa escrita ungida de hálitos de esperança, saberá desencantar, por intensa vocação, o discurso bem amassado e odoroso de um tão esperado pão, no futuro," in "A Filha de Thandy".
(Adelino Timóteo)
2009-05-05 05:54:00