quarta-feira, 19 de março de 2008

O Elogio da Loucura Moçambicana


Texto Publicado no Autarca dia 19/03/08

Gosto bastante de um livro com título Elogio da Loucura. A obra pertence a Desidério Erasmo, mais conhecido por Erasmo de Roterdã, porto holandes onde nasceu. Encomium Moriae é o título original da obra escrita em Latim e publicada em Paris em 1511.
Erasmo escreveu o livro dedicando ao seu amigo Thomas More, autor da "Utopia". Em 68 capítulos, o autor descreve o seu pensamento de uma forma muito satírica o que desperta a maior atenção de todos que tentam entrar no seu mundo.
É verdade que o livro tem uma grande dose filosófica que só os filósofos podem realmente perceber. Eu que não sou filosofo, mas que gosto da ideia, percebi que o título não foge do texto. Aqui, a loucura tem uma personalidade, faz o seu próprio elogio e apresenta-se como rainha poderosa que comanda e orienta a humanidade.
Mais do que esse protagonismo da Loucura, Erasmo denuncia males que na época se apossaram da humanidade e dificultavam a construção de uma sociedade de paz, justiça social, respeito pela vida, pelo outro e pelas virtudes, já que, o autor, para alem de pensador era também Teólogo.
É portanto a partir do ponto de vista cristão que ele orienta todo seu discurso que faz várias voltas entre o cristianismo e o cristianismo protestante.
Bom, na verdade não é sobre a obra que pretendo falar. Pretendo falar, é sobre várias coisas que não sei bem como organizar. Se calhar seja essa minha loucura também, mas custa-me acreditar que vivo em uma sociedade para a qual Erasmo escreveu seu livro. Uma sociedade egoísta, individualista, sexista, machista, materialista, narcisista e preguiçosa.
Ontem, depois do escritório decidi dar uma volta pelas artérias da cidade do Maputo só para olhar as ruas, as pessoas a caminhar, os carros a passar e a polícia a trabalhar. Algo que de vez em quando faço antes de chegar a casa, já que a casa começa a ser uma extensão do escritório.
Preocupou-me durante o passeio a quantidade de crianças de rua. Com a corrente fria que fustiga a cidade, essas crianças continuavam no passeio sem camisolas, casacos ou outro tipo de agasalho. Todos nós que passávamos, simplesmente passávamos e nada podíamos fazer.
Ainda antes das 20horas, em plena chuva, algumas meninas já estavam posicionadas em certas esquinas da Av. 24 de Julho acenando para que os carros parassem. Eu sei quem são essas meninas. São aquelas que nós chamamos de meninas de programa, ou simplesmente prostitutas e dizem que elas cobram entre 50 a 500Mt dependendo do cliente e das suas exigências.
Passei também por um lugar próximo ao museu onde um aparelho bem forte de som disparava músicas da nossa juventude. Tratava-se de Pandza e Dzukuta. Alguns homens e muitas meninas a dançarem com copos na mão ou garrafas no murro. Apesar do frio e do facto de ser uma segunda feira, a festa era muito intensa e os gestos eram eróticos, quando olhei para a indumentária das moças descobri que estavam quase nuas.
Continuei meu passeio ao jardim dos namorados onde encontrei gente sentada. Estas pessoas aparentavam estar mais calma, sem pressa nem apreensão. Comiam e bebiam na mais bela calma.
Desci a marginal e contornei para sair na feira. Vários carros parados, vários agentes circulando e muita gente namorando. Subi pela feira, peguei a avenida Samora Machel e conduzi a casa.
Não sei exactamente o que estava na minha cabeça. A única certeza é que o livro de Erasmo não saia de mim. Pensava nele com muita intensidade e decidi voltar a le-lo. Mas estava tão cansado que decidi jantar, tomar meu café e esperar o sono.
Pela manha, quando abro os blogs para fazer um check up das informações do dia, deparo-me com uma séria discussão na Oficina de Sociologia do Prof. Carlos Serra. A questão era a música do senhor Zico: Nakudjula Hi Doggystile.
Nunca ouvi a música, nunca vi o clip. Não gosto do género e quase nada sei do seu autor. Na discussão levantava-se também a problemática de um seu vídeo pornográfico difundido pela net e celulares. Leitores e artistas, personificando o livro de Erasmo
Voltei a pensar no Elogio da Loucura. Até que apareceu-me um cliente. Era um cliente muito bem vestido, trazia sua pasta preta e parecia que queria um bom advogado. Na Liga dos Direitos Humanos onde trabalho não cobramos pelos serviços já que o pressuposto é ajudar a cidadãos sem renda ou com renda baixa.
Já estava a preparar a resposta para o tal senhor que visitou o meu escritório e parou meus pensamentos sobre o Elogio da Loucura. Ele foi claro, curto e directo: "dr. eu não venho pedir ajuda jurídica, venho pedir 5 ou 10 Meticais para comprar pão. Estou a morrer de fome e quase ninguém me dá nada. Olham para mim, para a minha mala e pensam que tenho dinheiro ou que sou maluco".
Por minutos fiquei imóvel e sem jeito. Mas depois transportei-me aos tempos de faculdade. Tive nesses tempos momentos muito difíceis da minha vida. Foi nessa altura que aprendi o que era a fome e o pior é que os meus colegas não imaginavam que na mesma turma de direito estava alguém que não tinha nenhuma refeição no dia e fazia dias nessa situação.
Lembrei-me da vergonha que em certos momentos passei quando realmente devia pedir algo para matar a fome e suprir outras necessidades básicas. Estudei sem bolsa e nós em Moçambique não temos a pratica de empregar estudantes.
Meti minha mão no bolso, achei 20 Meticais e dei ao senhor. Pedi que ele se alimentasse e se cuidasse, mesmo sabendo que com 20 Meticais, o homem nada podia fazer.Voltei a viajar no Elogio da Loucura.
Não me perguntem porque, nem como essas situações se interligam ao ponto de chamar a obra de Erasmo. Mas a verdade é que, fui pensando no livro como algo que de certa forma acalmaria meu ânimo mesmo que não respondesse minhas perguntas. Fui pensando no livro como um crente que pensa na Bíblia.
Pensei em procurar alguém que me ajudasse a libertar minha mente desse pensamentos que a cada hora enchiam minha cabeça sem misericórdia. Mas não me ocorria ninguém. É que em muitas situações os meus mais íntimos pensaram e disseram que eu era muito antiquado. Não é possível em pleno Sec XXI continuar a ler Erasmo, Homero, Sócrates, Hume ou Hobbes. Não é possível que alguém bem de cabeça passe seu tempo a ouvir Jazz e Blues, não goste de ir ao Coconuts e passa a vida a dizer que a novela tem efeitos drásticos na vida da pessoa. Ainda mais quando essa pessoa pensa que é jovem.
Posso assumir que sou louco sim. Ma assumo também que uma boa parte do que me rodeia assumiu a loucura como algo saudável. Uma boa parte da minha sociedade assumiu o prazer como a única regra de vida e definiu os valores da vida e da pessoa em função de algo que me transcende. Não sei se é loucura ou não, mas não percebo como para o homem tudo é normal, tudo pode ser feito e tudo pode ser experimentado.

1 comentário:

Anónimo disse...

Tenho que fingir que tambem li muitos livros. Que nao li Locke, Hobbes e Hegel apenas nas aulas de Historia do Pensamento Politico. E nesse mister cito, de memoria, um dito de Michel Foucault (talvez o louco mais idolatrado de todos os tempos) "Ja fui racional o suficiente para entender a Loucura, agora espero ser louco o suficiente para entender a Racionalidade". Moral da historia? A loucura ja deve fazer parte de uma sociedade "normal". Agora imagina desta...constitui-se como a mais racional alternativa para se manter vivo. Zaka Zah
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