quarta-feira, 16 de março de 2011

Caça aos Drogados de Miami

Reflexão ao amigo Arsénio Henriques (STV)

Caro amigo Arsénio,
Vi com certo desagrado o programa que passou hoje de manha (dia 16 de Março de 2011) na STV em que tu acompanhaste alguns agentes do Departamento de Polícia de Miami, em Janeiro, a busca de supostos consumidores de droga, traficantes e outros nas artérias da Cidade.
O meu desagrado não tem a ver com a reportagem em si, estiveste bem meu amigo e mais uma vez parabéns a ti e a equipa que te acompanhou. O meu desagrado vem na sequência desse tipo de buscas direccionadas e imbuídas de preconceitos.
Fonte da Imagem: aqui

Deixe-me chamar-te atenção à algumas questões que considero importantes:

Em primeiro lugar, pareceu-me que os agentes policiais que acompanhaste já sabiam muito bem quem eram os supostos consumidores, sabiam qual era a sua ocupação diária, sabiam também onde os encontrar e até previam o tipo de reacção por parte deles. É verdade, não porque estavam bem preparados embora estivessem, mas porque:

Quem são os consumidores de droga: os jovens negros!

Onde vivem os consumidores de droga: nos bairros periféricos de Miami!

Quais é a ocupação dos consumidores de droga: desempregados!

Qual o nível académico dos consumidores de droga: analfabetos e alguns, poucos com o nível secundário!

Onde encontrar os consumidores de droga: nos parques, nas varandas das suas casas, nos passeios das ruas e em pequenas viaturas do bairro!

Como é a família dos consumidores de droga: desestruturada!

Proveniência da renda dos consumidores de droga: pequenos furtos e programas sociais públicos!

Idade dos consumidores de drogas: dos 10 anos aos 45 anos!

Esperança de vida dos consumidores de droga: 30 anos de idade (quase sempre por morte violenta)!

Podia aqui enumerar outras características desses malditos consumidores de droga, aqueles que poluem a cidade e a tornam perigosa, mas tu viste tudo isto com os teus olhos e reportaste. Deves ter notado também que os agentes policiais eram brancos. Maioritariamente brancos. Chega a parecer uma guerra racial, num país em que o presidente é negro, na percepção de muitos.



Até achei muito interessante o facto de um dos negros que estava em melhor posição nos factos que reportaste teres sido tu meu caro amigo. Um negro de Moçambique!
Se calhar o que não viste meu amigo, é o que mais importa. Não foste visitar os bairros onde moram os brancos de Miami quem sabe podia encontrar o mesmo cenário, pior ou melhor? Ninguém sabe. O que sabemos é que a luta contra os pequenos consumidores de drogas em pequenas quantidades, como a marijuana (passa), o krack e a cocaína em países como os Estados Unidos está completamente perdida. É que essa indústria é sustentada por uma grande estrutura que ultrapassa o imaginário dos tais dependentes.
E quem são esses que sustentam essa industria? São pessoas que não vivem nos bairros negros. Não são negros na sua maioria, não são analfabetos porque tiveram a melhor educação possível. São executivos, senhores de grandes empresas, membros do governo, do senado e de outras estruturas do poder.
Não têm famílias desestruturadas, não vivem na periferia e nem são desempregados, são os tais de colarinho branco que a gente sempre fala e ninguém os conhece. Todos sabem que existem mas nunca são presos. Não são parados na estrada, não são revistados e nunca a polícia ousa tirar a peruca das suas cabeças.
Sim, são esses que levam a droga para aqueles bairros pobres, são eles que se enriquecem com essa droga e são eles que alienam a mente daqueles pobres negros e depois mandam a sua polícia para os prender. Passam a ser mais uma contribuição nas estatísticas de centenas de milhares de negros nas cadeias Américas. Coisas que tu reportaste.
Não estou aqui a defender os consumidores de droga de Miami. Estou a chamar a tua atenção para perguntas que não fizeste. Se calhar não eram necessárias para a tua reportagem, mas se fores a ver as imagens vais perceber a razão da minha indignação: nós negros, vítimas de estigma, de preconceito e até de racismo. Como mostraste, basta ver um carro de jovens negros a passar devem com certeza ter drogas e se for um carro de jovens brancos?
Outra pergunta que não foi feita é como esses bairros pobres quase 100% habitados por negros são sustentados. São sustentados por políticas públicas capitalistas que não criam acções afirmativas no sentido de reduzir desigualdades sociais. São bairros que ilustram o verdadeiro lado do capitalismo: enriquecer a poucos, os fortes e empobrecer a muitos, os fracos. Quase a mesma linha que estamos a seguir aqui em Moçambique!
Aqueles negros que reportaste a serem presos, mostram o quanto o sistema é cobarde e preconceituoso. Um sistema que busca bodes expiatórios para tranquilizar a sua consciência. Mostram o quanto é dura a vida dos negros. Mostram o quanto ainda é longo o caminho para a nossa afirmação. Aqueles negros mostram o quanto a estrutura do tráfico da droga é forte, fortalecida e protegida. Mostra o quanto o círculo vai cada vez mais beneficiar aos verdadeiros traficantes de droga.
A próxima vez que fores aos Estados Unidos para trabalhos de género procure entrevistar as famílias dos negros detidos e perceber os dramas do seu dia-a-dia. Procure também visitar os bairros dos brancos, procure saber da vida deles e compare. Se possível pergunte a polícia para te explicar como é que a droga acaba chegando aos bairros negros.
É quase tudo o que eu tinha a dizer. Obrigado amigo

19 comentários:

Julio Mutisse disse...

Quase chorei... as lagrimas so nao cairam por causa da comparacao com Mocambique que me parece um pouco forcada. Mas em 99,9% do que dizes aqui concordo contigo meu caro amigo (o que resta para os cem eh a tal comparacao).

(De onde conheco o Duma desta postagem? rsssssss)

Anónimo disse...

Amizade...
Li duas três vezes este artigo para puder apanhar o teu raciocínio, e acho que encontrei.É sempre fácil falar daqueles que se tem certeza de que näo tem como se defender, o acto por eles praticados é visivel, näo suscita duvidas, é o caso da reportagem. Falar dos drogados nos bairros periferícos de Miami, náo se difere de falar de drogados da cidade de Maputo, ou de uma outra cidade qualquer. O que deve ficar claro para mim, näo é o consumo de drogas em si, mas sim o seu trafico, uma vez traficada dá origem a tdas consequencias arroladas na reportagem, pobreza, familia destrututada, jovens fragilizados sem oportunidades.Isso sim é que devia ter sido reportado, procurarem saber onde, como, quem, inicia e trafica drogas e com que objectivos os faz...

Unknown disse...

Ola amigo Muthisse,

Obrigado pela apreciacao. Nao fique assim triste pela comparacao porque essa foi mesmo uma comparacao mínima. Tentei nao entrar nos grandes detalhes da nossa segregacao social que em muitas situacoes nao permite muitos dos nossos cidadaos viverem uma vida condigna.

De todas as maneiras, penso que num desses dias poderemos dicutir sobre os efeitos nefastos do capitalismo em mocambique e tambem dos problemas que enfrentamos no arrumar as políticas públicas.

Obrigado amigo

Unknown disse...

Isso mesmo Amizade, conseguiste chegar ao meu ponto e acho que a partir daqui temos mais elementos para discutir o assunto.

Lembro me de alguem que dizia que a corda sempre quebra do lado mais fraco...é o que podemos ver. Sem querer apresentar essas vítimas do sistema como inocentes, devemos nos preocupar com a causa das causas!

Obrigado krida

Julio Mutisse disse...

Duma meu irmao... somos mesmo capitalistas? Podemos falar do capitalismo e tudo o que ele encerra (livre concorrencia, uma economia de mercado plena dentro daqueles conceitos que aprendemos etc) na nossa realidade? O que eh que estamos a construir?

Nao sao meras perguntas de retorica ou algo que va por ai, sao duvidas que eu tenho. Sao essas duvidas que, em parte, fundaram o meu medo em relacao a comparacao que fizeste no texto principal (magistralmente escrito e com o qual concordo como te disse).

Eh factual que ja nao somos comunistas... movemo-nos para algum lado e, por forca disso, o colectivismo cedeu lugar ao individualismo e a uma mais visivel diferenciacao social propiciada pelo contexto e pelas novas abordagens... mas nao tenho certeza que possamos falar de um capitalismo puro por aqui. Nao sei hehehehe.

Joel Prista disse...

Caro Duma ...

Muito dificilmente consigo ver o mundo a preto e branco e depois de ler o teu artigo .... continuo a desconseguir !

Vejo o mundo entre os que TEM e os que nao TEEM. Tudo o resto são argumentos dos + variados, desde a cor, a raça, a nacionalidade, a região, a religião, e tudo mais que possa ser usado ...

Se o sistema que criticas, dizes estar a ser implementado em Moçambique, quem dirige o sistema no teu país ?

Acho uma visão pela cor das pessoas muito fácil e simplista, e mais preocupante ainda, é que perpetua a interminavel conversa sobre o racismo e a vitimização constante de muita gente que não tem nada de vitima, muito pelo contrário.

Creio que o MORGAN FREEMAN recentemente deu uma entrevista e, a meu ver, acertou na mosca sobre esse assunto ...

De qq forma, aquele abraço e keep sharing your toughts, gosto da esmagadora maioria deles..

Anónimo disse...

Ola Duma!! Primeiro, parabeniza-lo pelo post!

Há muitas coisas que podiamos discutir a partir desde teu posto. Mas o importante já foi dito. Os problemas das drogas e marginalizacao das comunidades negras nos States säo de longe. Tentou O Martin Luther King Jr, Malcom X e recentemente o activista e rapper 2Pac Amaru Shakur(infelizmente assassinado pelo sistema político americano com apenas 25 anos de idade!)e tantos outros que continuam lutando até hoje para tornar USA uma estado onde a redistribuicao da riqueza e investimento em infra-estruturas de qualidade seja uma realidade nos seio destas comunidades. Nao vi a tal reportagem mas pela experiencia própria sei o que realmente se passa nos States. Lá existe, digamos, um mundo underground e com proprias regras e hirierquias bem estruturadas num mundo desestruturado.

Boa Matule

Egidio Vaz disse...

Texto escrito de forma idilica. Critica pertinente e construtiva.Parabens

Unknown disse...

Prista,

Concordo contigo, quando falas da forma de ver o mundo entre os que TEM e os que NAO TEM...O meu mal é ver que a maior parte dos que NAO TEM, sao NEGROS!

Isso nao quer dizer que os Negros nao podem repetir ou perpetuar as desigualdades, como se ve nao so em Mocambique mas em muitas partes de Africa. É a filosofia do escravao que quando liberto quer ser como o seu antigo amo!

Dai a nossa luta em libertar a Mentalidade e a Consciencia Escrava, mais do que ter uma independencia!

Unknown disse...

Obrigado Egídio!!!

Unknown disse...

É isso Boa,

Há que ir um pouco mais, buscando inspiracao naqueles que de certa forma identificaram a causa das causas desses males que atacamos.

Estamos juntos

Unknown disse...

É isso Boa,

Há que ir um pouco mais, buscando inspiracao naqueles que de certa forma identificaram a causa das causas desses males que atacamos.

Estamos juntos

Ximbitane disse...

Sim senhor, reflexão bem tirada. Não vi a reportagem em referência, mas so da publicidade do mesmo ja previa tal cenario... O Arsénio perdeu a oportunidade para nos mostrar o que de facto queremos ver da América,esse lado existe em muitos filmes em que actuam negros (sempre eles os refeirinhos) e os brancos (sempre eles a chefia). Sublinhe-se, nada tenho contra uma e outra cor

@PersonalEscrito disse...

Parabéns pela lucidez deste blog. O racismo nem sempre é percebido pelas vítimas dele.

dui disse...

oi duma
o assunto deve ser muito bem estudado quando queremos chegar a uma serta realidade para nao correr-mos riscos de continuar-mos suspensos naquilo que e a situacao real. parabens.

Unknown disse...

É isso ai professora! Dai o desafio que se nos oferece nos nossos dias..

Unknown disse...

Concordo Dui.

Bom fim de semana

Anónimo disse...

Boa tarde caros amigos, eu nao gosto de falar da questao do mundo do Narcotrafico porque e 1 problema muito complexo que no meu ponto de vista, nao acaba porque "eles" nao querem para acabar. Mas salientar uma coisa a reportagem americana foi feita simplesmente para dar uma impressao errada da situacao americana ou seja os culpados sao os negros imigrantes e nacionais que fomentam o consumo de droga no pais, isso e realmente errado por num pais que o maior consumidor de cocaina (1 droga que 1 kg esta aprox 20.000 USD) nao de bom grado dizer k esta droga e consumida pela populacao negra menos favorecida. Mas 1 coisa temos de salientar k os negros norte americanos nao ajudam o desenvolvimento comunitario, nao e possivel que 1 famoso rapper que se gaba de ter vendido quantidades de enormes de "cocaine" gastar 1 milhao de dolares num "club" enquanto tem irmaos que nao conseguem ir a universidade!!!! Temos de admitir que o capitalismos e 1 regime selvagem onde da se bem, quem "batalha" nos estados unidos existem condicoes para se iniciar essa batalha, o que os irmaos negros deviam fazer inves de ficar na varanda a fumar "weed" e pegar em "armas" e entrar fundo nessa batalha, e tentar seguir o exemplo dos outros que se deram bem nesse "guerra"......

Bayano Valy disse...

caro duma,

boa cena!!!!

eu não me preocuparia muito com as questões levantadas pelo prista apesar de considerar que nalgum momento poderíam até ser pertinetes. mas não neste.

achei justa e acertada a tua crítica. o problema dos jornalistas andarem "embedded" com os polícias ou militares é esse.

mas pior do que isso, é o facto de muitos jornalistas não saberem que o facto de alguém pagar o bilhete, alojamento e alimentação não é um livre tránsito para desenvolverem o síndroma de estocolmo e isentarem-se de tentar explorar ao máximo as fontes e as causas... hão-de me considerar elitista, mas acho que alguns jornalistas moçambicanos precisam de tirar o subúrbio das suas cabeças de modo a não pensarem serem subservientes á autoridade.