O direito como um fim
O direito é uma ciência de muitos problemas, embora ele procure no máximo evitar conflitos sociais. É por ser uma área do saber que lida com conflitos que é, em si, uma ciência de muitos problemas.
Um desses muitos problemas é provocado pelo legalismo jurídico que na sua essência procura trazer a certeza e a garantia na forma de ser do próprio direito e que entretanto, acaba servindo interesses alheios aos seus primeiros princípios, essencialmente da justiça.
Entendo o legalismo jurídico como o manifesto juramento de fidelidade ao formalismo jurídico, resultado do positivo jurídico bastante desenvolvido nos séculos passados.Tal fidelidade ao formalismo jurídico, parte do pressuposto de que todos devem obediência à lei, ou seja, que a lei deve ser igual para todos e deve sobre todas as consequências ser aplicada.
Entretanto, a questão principal neste tópico é que uma das consequências directas do legalismo jurídico é tratar ou considerar o direito como um fim em si. O direito é o conjunto de normas jurídicas imposta pelo poder público para garantir a ordem e a tranquilidade social.
Deve entender-se o direito como um conjunto de elementos que no todo constituem o meio à justiça. No geral, o direito é um meio à justiça, sendo que, é o direito que serve a justiça e não o contrário.Entretanto, a justiça é um fim em si. Para alem do direito, também serve a justiça a ética. A ética ilumina o ser humano sobre o que está certo e o que não está certo, ajuda a distinguir o justo do injusto. Isso equivale dizer que, o direito, para que realmente sirva a justiça precisa ser imbuído da ética.
O direito quando não imbuído da Ética não pode servir a justiça e transforma-se ele mesmo em um fim, na medida em que uma das consequências da ausência da ética é o apego incondicional ao formalismo jurídico e ao legalismo, o que na prática retira o compromisso com a justiça.
Os princípios mais recomendados do direito, exigem que realmente todos obedeçam às leis e que essas leis sejam iguais a todos, entretanto, o conceito de lei que se nos trás, é o de leis justas, sendo que, as leis injustas, ou as leis que não nos conduzem a justiça não podem constituir elemento de igualdade ou de exercício dos direitos fundamentais.É aqui que não se explica o apego desenfreado às leis, mesmo sabendo que elas são injustas só porque elas foram emanadas pelo poder público.
A justiça não deve nunca ficar refém do direito, é o direito que deve mudar quando não se alcança a justiça e nunca o contrário. Enquanto que o direito é relativo, a justiça é um conceito absoluto.
No meu trabalho como defensor dos direitos humanos encontro-me sempre com situações em que a justiça é relegada ao último plano e o direito elogiado em detrimento daquele. Este é o primeiro dos problemas do legalismo jurídico: preocupação em aplicar leis a fim de obedecer os formalismos legais exigidos mesmo que para tal tenhamos que sacrificar a justiça.
A Lei de família moçambicana, equipara a união de facto ao casamento só para os efeitos patrimoniais, isso depois de união estável de pelo menos um ano, sendo que, para que ela produza outros efeitos semelhantes o matrimonio civilmente reconhecido, o casal deve transcrever a união na instituição pública de tutela.
Uma das grandes lacunas dessa lei é que não conseguiu proteger o lar familiar de um casal em união de facto contra a vontade de uma das partes contrair um novo casamento. Ou seja, a união de facto não impede o novo casamento de cada uma das partes.
Os vários exemplos com que já me deparei no trabalho, dão conta de famílias que tendo vivido juntos cinco, dez ou mesmo quinze anos, uma das partes simplesmente comunica que dentro de dois ou três dias vai contrair o matrimonio com outra mulher ou com outro homem. Alguns nem mesmo comunicam, simplesmente saem e se casam.
Não sendo a união de facto impedimento para o casamento, o interessado simplesmente abandona o seu lar familiar, abandona os seus filhos, abandona tudo que juntos havia sido construído e simplesmente parte para constituir nova família.
A parte que fica, não pode intentar uma acção para impedir a celebração do casamento. Não pode porque a lei não permite e aqui, segundo a experiência, os conservadores e até juizes, nada fazem senão obedecer a lei e afirmam categoricamente que nada obsta que o fulano ou a fulana se case, porque nunca foi casada e não foram encontrados outros impedimentos.
Vemos aqui uma lei que desvirtua o conceito de família e que entretanto é aplicada só para garantir a segurança jurídica em detrimento da própria justiça. Penso que o que levou o legislador a impedir um novo casamento, antes de regularizar a sua situação, em pessoas civilmente casadas, deveria ser o mesmo princípio a proteger as uniões da facto, em que mais de metade da população moçambicana vivem, pois muitas delas se preocupam somente em realizar o casamento tradicional.
Entendo que a união de facto que tenha se prolongado por mais de um ano deve ser suficiente para impedir outro casamento sem que se regularize a situação anterior e consequentemente, o juiz deve, a favor da justiça decidir a favor daquele que requer o impedimento, mesmo que isso seja contra a lei.
Penso que o juiz pode decidir contrário a lei, desde que seja patente que aquela lei é injusta ou cria situações de manifesta injustiça social, económica ou outra qualquer. Sou por aquele movimento que advoga a não aplicação de leis injustas. Afinal é o direito ao serviço da justiça e não o contrário.
Esse é para mim um dos primeiros males do legalismo jurídico que infelizmente é orientador do sistema jurídico moçambicano, onde centenas de juizes, se por ignorância ou não, vão decidindo favoravelmente à injustiça sob pretexto de estarem a servir ao direito.
Sendo as leis, ou o próprio direito, produtos da vontade social, eles só podem ser usados ou aplicados quando sirvam os interesses da própria sociedade, sob pena de estarmos a inverter os valores. A racionalidade intelectual não deve nunca sobrepor-se às pessoas reais. É o direito que serve à pessoas e a justiça e não o contrario.
Esse deve ser também o objectivo principal de qualquer judiciário: assegurar a justiça entre as pessoas ou grupos de pessoas, mesmo que isso signifique abdicar de certas normas quando necessário.