O Estado Recusa Responsabilidades
Uma das grande perguntas que os leitores e a opinião pública fazem aos defensores de direitos humanos, não só em Moçambique é: “porque é que vocês estão sempre contra o Estado?”, ou por outra, “vocês trabalham para a oposição?”.
Essas perguntas são obvias na medida em que, primeiro: o conhecimento dos direitos humanos ainda é escasso, até há juristas que não conseguem distinguir matérias de direitos humanos e de outros direitos que não o sejam; segundo: a militância em direitos humanos é uma actividade basicamente direccionada ao Estado, monitorando, exigindo, contribuindo e muitas vezes litigando contra.
Para quem está fora do contexto, faz a leitura sem as reais premissas e tira conclusões que por si são falsas: “os defensores de direitos humanos são membros da oposição e a sua actividade é para sujar a imagem do governo e desacreditar os seus programas”.
Na verdade, o fim do trabalho em direitos humanos é o ser humano, é o cidadão, é a pessoa, o homem e a mulher que são o primeiro elemento para a existência da sociedade. Garantir suas liberdades, seus direitos fundamentais e a sua protecção contra os eventuais abusos do poder pelos governantes que para atingir fins políticos em alguns momentos extravasam os limites legais.
Moçambique está numa caminhada de progresso quanto aos direitos humanos. Tomando como inicio o ano de 1975 percebe-se como a teoria dos direitos humanos no país cresceu, um dos principais indicadores é a ratificação de vária legislação internacional de protecção da pessoa humana. O outro é a incorporação dessa legislação na legislação nacional para alem de aprovação de outra nacional para situações concretas.
Quero acreditar que mesmo a mentalidade das pessoas foi ao longo desse período crescendo e cada vez mais se apropriando dos direitos humanos em si. O discurso dos direitos humanos á tem alguma coerência e o direito constitucional moçambicano incorporou vários direitos fundamentais no seu rol o que significa desde logo grande evolução.
Embora estejamos caminhando nesse progresso realmente de louvar, é importante referir que está claro que o Estado moçambicano não aceita nenhuma responsabilidade pelos direitos humanos no país. A atitude tomada no tal progresso é tímida, na medida em que nos principais documentos ratificados fica claro que a declaração do Estado moçambicano é: “aceitamos o documento mas só cumpriremos o que acharmos melhor e, mesmo assim, não aceitaremos de nenhuma maneira que alguém, seja ele Estado ou Indivíduo (incluindo ONGs), tente levar o Estado Moçambicano a barra do tribunal por violações de direitos humanos. Mais ainda, sempre que algum amigo nosso (Estado) quiser violar direitos humanos em Moçambique pode fazer e nós não nos indignaremos.”
Parece uma falsa afirmação, mas é o que o Estado moçambicano expressamente diz e progressivamente mostra querer continuar a agir do mesmo jeito. Ora vejamos:
a) Quanto ao Tribunal Penal Internacional
O Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma visa estabelecer um mecanismo através do qual, indivíduos serão processados por crimes de genocídio, de guerra e outros crimes contra a humanidade. É portanto um Tribunal que está aberto a qualquer Estado do mundo. Moçambique não é parte do Tribunal embora tenha assinado o Estatuto.
Embora o país não seja parte do Estatuto, o nosso Estado já assinou um acordo bilateral com os Estados Unidos da América, onde concordam que na eventualidade dos EUA, ou seus cidadãos em missão ou estadia em Moçambique cometam um dos crimes acima mencionados, nenhum procedimento criminal será levantado para o efeito.
Nós precisamos desse Tribunal porque em muitas situações a justiça interna é fraca por vários motivos que já são conhecidos, sendo um deles a falta de recursos humanos, infrastruturas, capacidade de investigação e até vontade política. Assim, o Tribunal penal Internacional exerce sua competência independentemente do local em que o crime aconteceu, tendo em conta que o país é parte e sendo o caso elegível.
Quando Moçambique não ratifica o Estatuto de Roma, afirma categoricamente que a qualquer momento pode cometer um desses crimes, através de seus agentes e não quer ser responsabilizado. Quando assina tal acordo bilateral com os Estados Unidos, permite expressamente que os americanos cometam genocídios, crimes de guerra e outros crimes contra a humanidade no nosso país e não sejam processados.
b) Quanto ao Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
O pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos foi adoptado em 1966 e está em vigor desde o ano de 1976. Tal pacto consagra um série de Direitos Fundamentais, afirmando de forma mais detalhada a Declaração universal dos Direitos Humanos. O mérito do Pacto reside no facto de, através do protocolo facultativo criar um Comité que se responsabilizara em receber queixas contra o Estado parte, na eventualidade desse Estado violar algum dos Direitos Civis ou políticos nele consagrados.
Enquanto que o Tribunal Penal Internacional recebe queixas contra indivíduos que cometeram aqueles crimes, este Comité recebe queixas contra os próprios Estados.
Moçambique na sua política de reconhecer os Direitos Fundamentais dos cidadãos é parte do Pacto, entretanto, não ratificou o protocolo facultativo, embora tenha ratificado o Segundo Protocolo que é sobre a abolição da pena de morte. Assim, o Estado Moçambicano afirma que, reconhece os Direitos Civis e Políticos dos cidadãos, reconhece inclusive que o cidadão tem direitos a vida, mas reserva-se ao direito de violar qualquer um desses direitos sempre que assim achar necessário, e nesses casos não quer ser responsabilizado por ninguém.
c) Quanto aos Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos
O Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, é mais um dos órgãos jurisdicionais da União africana, foi criado em 1998 e entrou em vigor no ano de 2004. Moçambique é um dos 15 Estados Partes. Este tribunal recebe queixas contra os Estados parte, as queixas podem ser submetidas tanto por indivíduos como por ONGs ou outros Estados, mas o Estado parte deve declarar que assim o deseja, ou seja, o Estado parte deve assinar uma declaração que permite aquelas partes intentarem as respectivas acções.
Moçambique, embora parte do Tribunal não fez a Declaração, numa afirmação categórica de que aceita o órgão, reconhece os direitos dos cidadãos, mas não quer ser responsabilizado pela violação desses direitos, o que quer dizer, a contrario senso que, pode violar os direitos da Carta Africana quando bem quiser, já que a Comissão Africana só emite pareceres e recomendações, na eventualidade de receber denuncias.
Ora, não restam duvidas, nesses três exemplos que o Estado moçambicano manifesta de forma mais clara possível que não quer saber de responsabilidades no que diz respeito a violações dos Direitos Humanos. Já não sobra espaço neste texto para outros exemplos, contudo acredito ter lançado bases para uma seria discussão pelo menos no âmbito dos Direitos Humanos.